
Há tanto tempo ensaio para escrever sobre você. Passei anos procurando forças para fuçar nas lembranças. Anos tentando administrar a dor para ser capaz de pensar em você sem que as lágrimas viessem...
Ainda não sei o motivo pelo qual escolhi fazer isso hoje. Logo hoje, logo nessa semana em que estou um turbilhão de sensações tão confusas que por vezes nem me reconheço. Sei apenas, que hoje, especialmente hoje, senti vontade, me senti preparada e cá estou.
Ainda me lembro bem daquelas tardes de domingo...Éramos felizes! Eu, você e meus irmãos, brincando na rua, soltando pipa. Lembro das crianças da rua loucas atrás de você, querendo aprender a fazer a famosa pipa do Professor Gil – logo você, que nem terminou o 5° ano chamado de professor –.
Me lembro bem do jeito que me beijava sempre que me encontrava, e do seu cheiro de perfume que eu tanto gostava, ainda que um leve resquício de cigarro se mantivesse penetrado em suas roupas, mesmo depois de banho tomado.
Me lembro de suas unhas sempre feitas...tão bem cuidado você era!
Me lembro do seu "R" puxado e do "S" arrastado...tão sonoros e hoje tão familiares que sempre que escuto alguém falando assim sinto você.
Não consigo aceitar, não consigo pensar sem dor. Eu apenas me convenci. Mas não posso negar, de maneira nenhuma – Sinto tanta saudade – , uma saudade imensa, uma vontade de te abraçar de novo e de poder dizer que te amo, e que sinto muito por tantas coisas.
Me lembro de você sentado na calçada, era sua marca registrada, com uma das pernas dobradas e o braço apoiado sobre ela, sempre me dizendo, " Sai do sereno menina! " – já que eu queria sempre estar ao seu lado – .
Me lembro de você dirigindo, eu te olhava pelo retrovisor. Eu era tão quieta que você até esquecia que eu estava no carro. Cheguei atrasada na escola milhares de vezes por isso!
Lembro do seu assobio, ou melhor, uma tentativa de assobio, já que não fazia muito som. E o meu assobio é igual ao seu! Além disso ainda levo uma ruga na testa! Outra coisa que herdei de você.. e Poxa vida né Vô! Tanta coisa pra herdar, fui ficar bem com a ruga na testa e com um ensaio de assobio!
Posso ficar muito tempo falando de lembranças, tantas e tantas boas lembranças...
( Tento controlar, mas os olhos já estão cheios d'água!)
Me lembro de quando cheguei em casa e mamãe disse que você tinha passado mal.
" - Seu avô passou mal!"
" - Ah meu Deus, não acredito! Onde ele está? No hospital?"
Sei que estava me esperando voltar, mas não tivemos tempo né?
E um silêncio reinou, não tive nenhuma resposta sonora, apenas o balaçar de cabeça indicando que não. Não estava no hospital.
Pensei que fosse morrer. Que dor horrível..que vontade de não levantar! Um buraco se abriu, não conseguia, e não queria conseguir. Eu queria mesmo era me apagar naquele instante.
Fui uma das primeiras pessoas a chegar lá, e quando te vi, não acreditei. Tão inesperado! Te toquei e você ainda estava quente, parecia dormir, e dentro de mim, algo de confortante apareceu " Vovô está dormindo!" – chega a ser besta, dormindo dentro de um caixão – Quantas coisas usamos para anestesiar os sofrimentos que pode-se acreditar no impossível! Me sentei ao seu lado, e consigo me lembrar das mãos das pessoas me tocando pelas costas dizendo que sentiam muito, mas raras vezes eu olhei pra alguma dessas pessoas. Meus olhos eram seus. Nem me movia, não queria me mover. Só queria te olhar, só queria estar alí!
Não me lembro do momento em que notei que sua pele começava a endurecer e esfriar. Quando percebi, já estava desesperada, o sono era eterno, você não levantaria mais e eu também nunca mais escutaria você me chamar de " Princesinha do agreste ".
A ausência da sua voz me machuca tanto, e sabe o que mais me faz sofrer, eu não me lembro mais de como ela era. Não me lembro mais de sua voz! Me esforço pra lembrar, mas não consigo...Só guardo imagens, os assobios cantarolantes, o sorriso, o cheiro, o aconchego, mas não a voz. Lamento tanto por não lembrar!
Como sofro por não estar aqui! ....Foi a despedida.Tão dolorosa!
Te beijei ma testa, tão fria...peguei em sua mão...me debrucei em você quase deitando junto, não queria que te levassem, depois de fechado eu jamais veria você de novo. Resisti, pedi pra não fechar e fechei os olhos, não queria vê-lo desaperecer na minha frente.
E foi assim, de olhos fechados, olhos que nunca mais se abriram diante de você.
Te sinto aqui, sempre comigo!
Quando olhaste bem nos olhos meus, e o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei, eu te estranhei. Me debrucei sobre o teu corpo e duvidei...
Me lembrei de um poema, que sempre me faz pensar em você, mas não lembro de quem é, se é da Adélia Prado, ou do Drummond..
A um ausente
Tenho razão de sentir saudade
Tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral...
Antecipaste a hora.
teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
...
Sim, tenho saudade!
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto na natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.